17.5.12

A cena à máquina

«Por fim alcancei a zona das grandes ondas; ouvia-as rebentar com estrondo. Parecia ser demasiado tarde. Não conseguia nadar, sentia os braços exaustos, a perna direita doía-me terrivelmente. A única coisa que importava era respirar. A corrente rugia sob a superfície, rolando e arrastando-me com ela. Eis, pois, o fim de Camilla, eis, pois, o fim de Arturo Bandini - mas, mesmo então, eu não conseguia deixar de escrever tudo aquilo, via as palavras negras sobre a brancura da página, via-me a escrever a cena à máquina ao mesmo tempo que flutuava ao largo da areia áspera, certo de que não escaparia com vida. Depois apercebi-me de que a água me dava apenas pela cintura, mas sentia-me demasiado fraco e exausto para fazer o que quer que fosse. Continuei a patinhar penosamente, mas de espírito claro, a redigir todo o episódio, preocupado em não abusar dos adjectivos. A onda seguinte abateu-se sobre mim e empurrou-me até onde a água não tinha mais de trinta centímetros de profundidade. Gatinhei em direcção à praia, perguntando-me se poderia transformar aquela experiência num poema. Pensei em Camilla perdida no mar e chorei, notando que as minhas lágrimas eram mais salgadas do que a água. Mas não podia ficar ali deitado, tinha de ir procurar ajuda. Levantei-me e cambaleei em direcção ao carro. O frio fazia-me bater os dentes.»

John Fante
Pergunta ao pó
Edições Ahab
tradução de Rui Pires Cabral

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