26.7.12

Demasiado idiotas

«Esses atentados são sem dúvida infantilidades, tenho quase a certeza disso. Mas esqueces aqueles que nos observam para além da fronteira e que são demasiado idiotas para compreenderem que se trata de uma fraude. Têm todo o apoio da grande potência imperialista que não hesitará em invadir-nos para reprimir aquilo que eles julgam ser uma revolução. Esses filhos da mãe trarão com eles tudo o que detesto: a ordem, o trabalho e o dinheiro. Este lugar ideal será poluído para sempre. Vivemos no canto mais civilizado da terra porque não possuímos nada. Podemos viver tão livremente como os pássaros no céu; o governo nem dá por isso: é tão pobre que não tem sequer os meios para se preocupar com a vida dos cidadãos. Isso exigir-lhe-ia um esforço material incompatível com as suas finanças. Podes atravessar a rua no ponto que quiseres, não há passagens para peões. Mas se por azar essa raça de predadores vier pôr ordem aqui, sob o pretexto da revolução, essa liberdade perder-se-á para sempre. São capazes de instaurar passagens para peões no deserto. Será a escravatura debaixo do reinado do dinheiro.»

Albert Cossery
Uma Ambição no Deserto
Antígona, 2002
tradução de Sarah Adamopoulos

Aves de rapina

«Samantar estava convencido de que a pobreza de um país era a sua única salvaguarda contra as aves de rapina, armadas ou não, que esperavam apenas a promessa de lucro para partir à sua conquista, para o esquartejar, para o minar; e agradecia aos céus ter nascido numa terra desértica, desmunida de quaisquer matérias primas raríssimas e suficientemente repelente para desencorajar as almas mercantis.»

Albert Cossery
Uma Ambição no Deserto
Antígona, 2002
tradução de Sarah Adamopoulos

2.7.12

Bola de resina

«Nejma acocorou-se sobre a esteira junto do pai, ajeitou a boneca contra a anca e pôs-se a confeccionar um cigarro de haxixe destinado ao visitante. Com os seus delgados dedos de menina, desfez em migalhas a bola de resina, minúsculos fragmentos que ela misturou com tabaco; depois, com o indicador, comprimiu a amálgama numa folha de cigarro. Com o rosto sorridente virado para Samantar, humedeceu com a língua o rebordo da folha e enrolou-a com a destreza de um prestidigitador. Depois, levantou-se de um salto e estendeu  ao jovem o cigarro impecavelmente enrolado, pousado na palma da mão como num guarda-jóias. Samantar pegou no cigarro e agradeceu-lhe beijando-a na testa. Era a criança de uma mulher que Hicham desposara na sua primeira juventude e que havia morrido algum tempo após o nascimento da menina. Hicham responsabilizara-se por ela. Entre as domésticas indispensáveis à vida quotidiana, tinha-lhe ensinado a confeccionar cigarros de haxixe e ela tornara-se uma especialista na matéria. Todos os convidados de Hicham louvavam a sua gentileza e admiravam o seu virtuosismo num domínio onde as mulheres não tinham ainda adquirido qualquer mérito.»

Albert Cossery
Uma Ambição no Deserto
Antígona, 2002
tradução de Sarah Adamopoulos