22.5.12

Com unhas e dentes

Estar vivo
é abrir uma gaveta
na cozinha,
tirar uma faca de cabo preto,
descascar uma laranja.
Viver é outra coisa:
deixas a gaveta fechada
e arrancas tudo
com unhas e dentes,
o sabor amargo da casca,
de tão doce,
não o esqueces.

Luís Filipe Parrado
Entre a carne e o osso
Língua Morta, 2012

copiado daqui

19.5.12


17.5.12

A cena à máquina

«Por fim alcancei a zona das grandes ondas; ouvia-as rebentar com estrondo. Parecia ser demasiado tarde. Não conseguia nadar, sentia os braços exaustos, a perna direita doía-me terrivelmente. A única coisa que importava era respirar. A corrente rugia sob a superfície, rolando e arrastando-me com ela. Eis, pois, o fim de Camilla, eis, pois, o fim de Arturo Bandini - mas, mesmo então, eu não conseguia deixar de escrever tudo aquilo, via as palavras negras sobre a brancura da página, via-me a escrever a cena à máquina ao mesmo tempo que flutuava ao largo da areia áspera, certo de que não escaparia com vida. Depois apercebi-me de que a água me dava apenas pela cintura, mas sentia-me demasiado fraco e exausto para fazer o que quer que fosse. Continuei a patinhar penosamente, mas de espírito claro, a redigir todo o episódio, preocupado em não abusar dos adjectivos. A onda seguinte abateu-se sobre mim e empurrou-me até onde a água não tinha mais de trinta centímetros de profundidade. Gatinhei em direcção à praia, perguntando-me se poderia transformar aquela experiência num poema. Pensei em Camilla perdida no mar e chorei, notando que as minhas lágrimas eram mais salgadas do que a água. Mas não podia ficar ali deitado, tinha de ir procurar ajuda. Levantei-me e cambaleei em direcção ao carro. O frio fazia-me bater os dentes.»

John Fante
Pergunta ao pó
Edições Ahab
tradução de Rui Pires Cabral

12.5.12

Dias estéreis da determinação

«Os dias estéreis da determinação. Era essa a palavra certa, determinação: Arturo Bandini sentado em frente à máquina de escrever dois dias seguidos, ininterruptamente, determinado a vingar. Mas não resultou; sofreu o mais longo cerco da mais dura e implacável determinação de toda a sua vida, e não escreveu uma única linha, mas apenas uma palavra, repetida pela página inteira, de cima a baixo, uma palavra só: palmeira, palmeira, palmeira, uma batalha mortal entre a palmeira e eu, e a palmeira ganhou: via-a lá fora, a balançar sobre o ar azul, a ranger docemente sobre o ar azul. Ao fim de dois dias de batalha, a palmeira levou a melhor e eu esgueirei-me pela janela e sentei-me debaixo dela. Passou algum tempo, um momento ou dois, e adormeci, com pequenas formigas a passearem-se alegremente por entre os pêlos das minhas pernas.»

John Fante
Pergunta ao Pó
Edições Ahab
Tradução Rui Pires Cabral

9.5.12

Um problema bicudo

«Uma noite estava sentado na cama do meu quarto de hotel em Bunker Hill, bem no meio de Los Angeles. Era uma noite importante na minha vida, pois tinha que tomar uma decisão sobre o hotel. Ou pagava, ou saía: era o que dizia o bilhete que a proprietária tinha metido por debaixo da minha porta. Um problema bicudo, a exigir toda a atenção. Resolvi-o desligando a luz e metendo-me na cama.»

John Fante
Pergunta ao Pó
Edições Ahab
tradução de Rui Pires Cabral

6.5.12

Com as entranhas e com o coração

«Sim, Fante teve um efeito poderoso sobre mim. Pouco depois de ter lido aqueles livros, comecei a viver com uma mulher que bebia ainda mais do que eu. Por vezes tínhamos discussões violentas, durante as quais eu costumava gritar-lhe: "Não me chames filho da puta! Eu chamo-me Bandini, Arturo Bandini!

Charles Bukowski
Prefácio de Pergunta ao Pó de John Fante
tradução de Rui Pires Cabral